ENGANO - Romance de João Legate

Capítulo I - Minha sincera proposta, narrar o que vi
Quem sou, por quem sou e onde estou não têm a mínima importância

Não devo dizer em que lugar estou e as razões que me levaram a escrever esta história. O mundo não é um lugar tão grande assim e você, por certo, logo deve descobrir esses detalhes e que garanto serem apenas isso, detalhes insignificantes perante ao contado. Também não devo dizer por que escrevo e os motivos de descrever aqui esses acontecimentos. De momento, posso dizer apenas que sou um porteiro de indústria que, por três horas no turno de trabalho, têm a tranquilidade suficiente para digitar algumas memórias de uma vida que espera o pano das cortinas, senão o pesado pano da mortalha.
Por isso, não se prenda às conclusões precipitadas induzidas por este escrivão que somente almeja ser um narrador sem pretensões de contar nada além do que viu e que, por hora, se faz interprete da realidade observada, a qual passou por entre seus dedos como a areia fina dos antigos relógios.
Eis a vida como entendo e como a vi, pequenas partículas de areia a se juntarem na soma de nossas horas. 
Vi meu mundo e meu mundo, o pedaço que me coube, está aqui.

Capítulo II - A miséria exige testemunhas
Como Orlando veio a este mundo e de que tal maneira se apresentou sua triste sorte

Poucas são as coisas que, ainda, me causam espanto nesta vida. Uma delas é a coincidência dos eventos aparentemente desconexos. Os deuses têm vocação para dramaturgos e por anos desencadeiam fatos que só vão tomar sentido quando se cruzam na linha do tempo.
Com as dores do parto iminente, Dona Aurora ignorava essas coincidências de que falo. Rezava em meio ao suor que empapuçava o travesseiro e apertava com muita força as mãos da Maria Beata, parteira muito respeitada na Vila Operária, mulher que alternava esse ofício com o de benzedeira. Na sala ao lado, que também fazia as vezes de cozinha e despensa, a mulherada da vizinhança fazia uma barulheira de dar nos nervos, comentavam a radio novela, comentavam a vida alheia, trocavam receitas de comida e sabão, enquanto que, em calafrios, na dor imensurável, Aurora no pobre quarto urrava.
- Ai meu Deus, vai ser agora! - gritou Maria Beata, ao adivinhar o parto difícil.
De repente, o silêncio fez o seu clarão na sala. Bacias com água, panos, rosários e velas simplesmente apareceram ao pé da cama da mãe agonizante. Uma menininha que trazia uma boneca nos braços entrou no quarto e colocou um rústico crucifixo nas mãos de Aurora, que desfalecera.
- Ai minha Santa Rita! - disse a parteira, espantada com o sangue denso que se espalhava pelo lençol. - Saia menina, encoste a porta e me chame a Mariquinha para me ajudar! - ordenou Maria Beata.
Exatos 40 minutos passados, ouve-se um choro de criança. O silêncio foi-se de imediato e logo a conversa das mulheres na sala-cozinha voltou a tomar volume crescente até Maria Beata aparecer em lágrimas com o rebento em seus braços. Dona Aurora, aos 28 anos de idade, dera seu último suspiro sobre a terra.
- Ela morreu! - alardeou uma das mulheres em soluçante choro.
Maria Beata fez coro ao choro que tomava a casinha de madeira:
- Dona Aurora queria que se chamasse Orlando, em homenagem ao cantor... Infeliz, quem vai cuidar dele? Cadê, onde anda o traste do pai? - clamou a parteira, ao estreitar nos flácidos peitos aquele mirrado bebê que se apresentava ao mundo enrolado num trapo, sem pai nem mãe, já desafiado pela sorte.


Capítulo III - A Santa Casa e sua misericórdia
Como o outro Orlando veio a este mundo festejado com charutos e uísque


Doutor Misael era um advogado metódico. Acordou já sabendo que deveria levar a mulher, Dona Eliane, à Santa Casa de Misericórdia exatamente às oito horas daquela noite. Havia contratado o melhor quarto, contatara médicos e enfermeiros, encomendara flores e mandara cartões para os amigos dizendo da novidade próxima.
Às sete e meia colou com todo o cuidado e carinho a mulher no carro. Às sete e quarenta e cinco minutos, Dona Eliane já estava no hospital. Enquanto ela se preparava para o parto, Misael recebia os amigos na sala de entrada da Santa Casa. Tapinhas nas costas, abraços e congratulações pelo grande dia. Até o juiz da Comarca, doutor Guimarães, estava lá:
- Parabéns Misael, primeiro filho, não?
- Sim, é o primeiro ou primeira! - respondeu o advogado, enxugando o suor do rosto.
- Há de ser um varão, Misael. Um varão para colocar mais justiça neste mundo... Estamos precisando, Misael... Estamos precisando.
- Sim, justos e tementes a Deus estamos precisando! - disse, o capelão da Santa Casa que também se fazia presente ao grande evento.
À medida que o tempo passava e as notícias não vinham da maternidade, Misael ficava mais apreensivo. Respondia aos amigos sem saber o que respondia ou que falavam. Na cabeça, apenas um verso sem sentido para a ocasião da música que ouvira ainda no carro, "esperança morreste muito cedo?", cantada por Orlando Silva. Estava assim a martelar a música para distrair o nervosismo, quando a surgiu a enfermeira com um sorriso largo no rosto:
- É menino! Sua esposa está ótima. Tudo foi uma maravilha!
Misael e os amigos não se contiveram ao externar a alegria. Charutos, abraços, felicitações... Até uns goles de uísque que surgiu não se sabe de onde.
- O senhor já tem um nome para o menino? - perguntou a enfermeira.
- Pensei em Orlando... Sabe, o cantor... O avô também se chama Orlando... Orlando Figueiredo Neto, fica bem... Não fica?
E assim, na mesma cidade, no mesmo dia e hora, chegavam ao mundo os dois meninos. Um miserável em tudo e o outro em tudo abastado. De posse comum, só o prenome tirado de um cantor de rádio.


Capítulo IV - A escola como martírio
De quando Orlando, o pobre, se deu conta que estava neste mundo a sofrer

Ainda na noite de seu nascimento, em meio a choro e berreiros, Orlando foi acolhido na pobre casa de Maria Beata, a parteira. A solução que devia ser provisória, acabou sendo permanente. Ninguém estava disposto a adotar aquele menino de olhos graúdos e de fome, magrela, embora dono de uma barriga enorme, provavelmente cheia de lombrigas. Somente Maria Beata, que era amigada com um pedreiro que vivia de biscates, o homem mais calado do mundo, foi capaz de assumir mais aquela cruz para si. Dura, porém religiosa ao extremo, Maria acreditava na expiação dos pecados aqui na terra mesmo. Deste modo, ela resolvia dois problemas, o pagamento de suas dívidas com o divino e a dureza do coração, amolecido pela afeição àquela criatura registrada em cartório como filho de Fulano de Tal.
Aos seis anos, Orlando foi para a escola e descobriu-se posto de lado pelos outros meninos. A razão era simples, numa cidade pequena, histórias como a dele se espalham e ganham proporções dantescas forjadas na calúnia e no mal que os mexericos gratuitos carregam nas tardes de vento e pelas esquinas. No meio da gozação e troças dos outros garotos, a única reação de Orlando era o choro. Em silêncio, olhava ao seu redor, enquanto duas largas lágrimas abandonavam seus olhos. Jamais compreendeu o motivo das pessoas caçoarem do infortúnio alheio.
Até mesmo os professores guardavam certo distanciamento do órfão que era meio aluado, triste e indiferente a quase tudo. A diretora do Grupo Escolar só não declarou Orlando retardado porque, alertada por uma mestra dedicada, viu nele qualidades raras, como desenhar e fazer as contas em grau muito superior aos colegas de sala.
Mirrado, o nome Orlando não lhe cabia e muito menos combinava com sua figura. Logo, de Orlando passou para Orlandinho, depois para Landinho e por último, Dinho. E assim ficou para todo o sempre.
Somente Maria Beata continuou a chamá-lo pelo verdadeiro nome. Velha, quase cega e descadeirada, a Beata havia parado de trabalhar como parteira. Orlando de Tal fora sua última obra e isso já era o bastante. Agora, em sua casa lidava com o fogão à lenha e cuidava das galinhas.  Mas, quem tem passado não é esquecido e volta e meia aparecia alguém para receber uma bênção ou reza da benzedeira. Nessas ocasiões, ela tirava o roto avental, que pendurava num prego atrás da porta e arranjava uma mesinha com uma toalha de renda encardida com um copo d'água:
- Orlando, vá pegar para sua vozinha alguns ramos de arruda e alecrim! - pedia Maria Beata ao menino, que saía num corridão pelo quintal para realizar com gosto o pedido da avó e mãe postiça.   


Capítulo V - A doce vida nem sempre entusiasma
 De quando Orlando, o rico, se deu conta que estava neste mundo tão enfadonho


Dona Eliane acordou Orlando Figueiredo Neto com um leve beijo na testa. Abriu as cortinas do quarto e anunciou:
- Acorde querido, hoje é teu aniversário. Vamos até a sala para ver quantos presentes bacanas você ganhou!
Orlando resmungou, mas diante dos apelos da mãe resolveu levantar da cama para ver seus presentes. Na sala, ele encontrou o pai que estava lidando com a montagem de uma bicicleta novinha.
- Esta daqui quem mandou foi o seu avô. Não é linda? É uma Peugeot. Falei para ele que era muito grande para você, mas ele disse que quer ver você competindo com ela! Um sonhador, meu pai! Um sonhador!
- Não gosto de andar de bicicleta, respondeu o menino.
- Ora, filho, tenho certeza que um dia você vai gostar...
- Olha esse outro presente, um Forte Apache! - disse a mãe, tentando desviar assunto!
- Esse brinquedo é chato! - respondeu Orlando, dando pouca importância aos outros mimos mostrados pelo pai.
- Você é um mal agradecido! - gritou Misael, que perdera a paciência com a indiferença de Orlando, que completava naquele dia sete anos.
- Não grite com nosso filho! - disse dona Eliane.
- Você está mimando demais este garoto...
- Não estou mimando nada, você que é um estúpido, onde já se viu. Ele é apenas uma criança! Veja, ele está chorando...
- Eu é quem deveria estar chorando! Você viu o boletim escolar dele. Um inapto, está praticamente reprovado. Vou ter que falar com o dono da escola para dar um jeito nisso...


Capítulo VI -  A cidade de Nova Jerusalém
 De quando Orlando, o avô, foi visitado por um anjo e supostamente perdeu o juízo

Já examinamos as condições de nascimento e início de vida dos pequenos protagonistas desta história que vos conto. Entretanto, tenho que mostrar um pouco da história profética da cidade em que esses meninos nasceram em condições tão diversas. Quando eles vieram ao mundo, a dinâmica cidade de Nova Jerusalém estava completando apenas 12 anos de fundação.
Orlando, o avô, fundador de Nova Jerusalém, fora engenheiro agrimensor da Companhia de Terras Norte Paraná, uma empresa fundada por ingleses e que colonizou a região, nas décadas de 1940 e 50. E dessa época só sei o que ouvi, nada presenciei, pouco vi. Há no que me foi contado por várias testemunhas, às vezes com exageros, outras com sinceridade e riquezas de detalhes, misturados ao messianismo que resvala pelos vastos campos da crendice e superstição do povo. E como proponho-me a narrar somente a história, deixo aqui os supostos fatos e acontecimentos para vosso julgamento.
Conta-se que Orlando, o avô, acordou muito estranho na manhã do seu quadragésimo segundo aniversário. Sua primeira atitude naquele dia foi se dirigir até o escritório da Companhia e pedir demissão em caráter irrevogável. Depois, chegou em casa e começou a revirar todos os mapas que tinha guardado em seu escritório. Dormiu em cima deles por duas noites seguidas.
Orlando, homenzarrão vermelho, descendente de alemães por parte de mãe, era conhecido por ser resoluto, teimoso mesmo e costuma brigar quando contrariado. Por isso, a família e seus amigos próximos, que eram poucos, estranharam muito as atitudes do alemão.
A mulher de Orlando, Dona Branca, que não era branca, mas uma bugre nascida nas ilhas do Litoral do Paraná, e que mal era alfabetizada, nada entendia daquilo tudo. Estava muito apreensiva com a mudança repentina do marido e ficou mais ainda quando soube que ele havia tirado boa parte de suas economias do Banco e em seguida tomado um avião para a capital.
Por quatro dias Orlando ficou em Curitiba sem dar notícias para a família. Quando voltou, nada disse e pediu para a mulher marcar um churrasco com todos os seus amigos no domingo, até mesmo os não muito amigos. Dona Branca, que nunca contestava o marido, marcou o churrasco, contente por achá-lo feliz e cheio de energia.
No domingo, durante o almoço marcado, Orlando pediu silêncio e anunciou o seu grande projeto:
- Vou fundar uma cidade. Ela vai se chamar Nova Jerusalém!
Todos ficaram olhando incrédulos para o alemão que esta com o rosto muito vermelho devido o exagero na cerveja.  As coisa ficaram piores quando Orlando contou que a ideia da construção da nova cidade viera-lhe num sonho. Uma entidade, talvez um anjo, acordara-lhe na noite de seu aniversário e voou com ele por sobre uma região de campo e disse-lhe que ali devia ser fundada a Nova Jerusalém, um lugar especial e que estava nos planos de Deus. O anjo havia inclusive lhe passado a planta da cidade, que teria na praça central a maior igreja da região.
Aos poucos, os amigos de Orlando foram deixando o churrasco, alguns até mesmo sem experimentar a costela que ainda assava na churrasqueira. A opinião, dita aos sussurros, apontavam para a perda de juízo do amigo engenheiro. Como era possível, um homem tão instruído, que todos acreditavam ateu, pois não frequentava a igreja e nunca fora visto comentando as coisas do céu?
- Estive na capital e comprei uma grande gleba que fica perto daqui, uns cinquenta quilômetros. Ali vou construir a Nova Jerusalém. Quem quiser se juntar a essa empreitada é só falar. Vou precisar de gente!
Vinte minutos depois, ninguém mais estava no churrasco. Definitivamente, o alemão tinha ficado louco. Ao seu lado, restara apenas o jovem Misael, que lhe abraçava num misto de pena e resignação.


Capítulo VII - Nova Jerusalém floresce em meio ao nada
Como a cidade foi fundada e Orlando, o velho, ficou milionário e sua estranha contabilidade


De início, Misael não confiou cem por cento no projeto do velho Orlando, mas passadas duas semanas, o então jovem adolescente viu que seu pai tinha um grande negócio em mãos. O velho não estava louco. Na segunda-feira, após o churrasco e o anúncio do empreendimento, Orlando alugou um imóvel no centro da cidade e mandou escrever na fachada, em letras garrafais, azuis e vermelhas, "Cia Nova Jerusalém loteamentos Ltda".
Misael chegou a acompanhar o pai na primeira visita à gleba destinada a construção da cidade. Orlando havia formado quatro turmas de agrimensores para mapeá-la e loteá-la o mais rápido possível  O terreno realmente era grandioso. O nada no meio do nada, porém grandioso. Um enorme campo que se estendia de horizonte a horizonte, cercado por florestas que escondiam o vale e um grande rio, pequenos córregos e algumas nascentes.  A ideía de Orlando era lotear a área urbana e também a rural, que seria composta por fazendas e sítios.
Enquanto isso, um jornal local noticiara a construção da nova cidade, depois foi um outro periódico da capital e a notícia, sempre com apelo messiânico, se espalhou pelo país todo. Em poucas semanas, o escritório da Cia Nova Jerusalém fervilhava de corretores e de gente que ali acorria das mais diferentes regiões brasileiras. Orlando teve que mandar vir gente de Curitiba para gerenciar o negócio. Um contador e rábula de nome Edmundo assumiu as rédeas da burocracia dos registros de vendas e, logo, os primeiros ônibus e caminhões carregados de aventureiros e suas mudanças começaram a partir para Nova Jerusalém.
Para garantir  o bom andamento do empreendimento e execução do projeto, o velho Orlando praticamente passou a morar no acampamento das obras, onde estavam estacionados as máquinas e operários. Mais tarde, este local seria destinado à praça central, igreja e rodoviária da cidade.
A princípio, prestando serviços como auxiliar do contador do escritório central, Misael chegou a duvidar da capacidade financeira da empresa em dar bom termo ao projeto. Os lotes eram vendidos a prazo, em longas prestações, e a demanda por recursos era maior do que o dinheiro que entrava dessa forma. Mas, como se fosse uma mágica ou milagre, numa rubrica chamada por Edmundo de "Fox-Trot", grandes quantias simplesmente apareciam registradas. Elas cobriam com sobras os gastos sempre crescentes da empresa. Misael ficou intrigado com aquilo, mas nada perguntou ao pai, pois considerava-se muito novo para se meter nos negócios dele. Certamente o velho Orlando conseguira uma outra fonte de financiamento para a construção da cidade, pensava.
Seis anos depois, antes de Misael partir para a capital, onde cursaria Direito, ele testemunhou o sucesso definitivo da obra paterna. O governo do Estado havia elevado Nova Jerusalém à categoria de cidade e sede da Comarca. Sem contar a área rural, avaliava-se que o sonho de Orlando compunha-se agora de 10 mil habitantes que viviam dos negócios gerado por duas indústrias ali instaladas, um frigorífico e uma Companhia Algodoeira de origem norte-americana.
A situação política e financeira da família Figueiredo poderia ser considerada invejável. O velho Orlando fora eleito o primeiro prefeito da cidade, seus primos e parentes próximos vereadores e o comércio local era de sua propriedade. As excessões ficavam por conta  da rádio Difusora, "O Jornal", o colégio particular e a Santa Casa de Mesiricórdia, que pertenciam aos padres missionários e freiras alemãs, que ali haviam se instalado desde os pioneiros dias.


Capítulo VIII - A infelicidade veio do Sacré Couer
 Como a vida do jovem advogado Misael começou a se arruinar a partir do casamento

Orlando, o avô, encheu-se de esperanças quando Misael foi estudar Direito na capital. Alugou o melhor apartamento que podia, comprou um carro zerinho para o filho e o recomendou para os melhores círculos sociais e políticos de Curitiba.
Misael não era um aluno brilhante, mas era considerado pelos professores como muito esforçado. Nos cinco anos em que ficou em Curitiba, sua dedicação foi quase que total à faculdade. Bebia muito pouco e só ia em festas quando estava interessado em arrumar namorada. Não era muito bonito, mas tinha lá seu charme nos olhos azuis metidos num rosto redondo de índio e uma boa carteira no bolso. Depois de uns namoricos e pequenos casos sem compromisso, Misael foi fisgado pelos encantos de Eliane, uma aluna de olhos grandes e tristes do último ano do Magistério do Sacré Couer. Exatamente o que ele procurava, moreninha de aspecto frágil, com os cabelos negros, bem cuidados e chegando à altura da cintura, instruída, prendada, filha de uma família de magistrados e sobrinha de um influente deputado de situação. A mulher certa para se casar, pensava Misael.
No último ano da faculdade ligou para o pai e disse que tinha marcado o noivado. Aproveitando a presença de sua família na capital, formou-se numa semana e casou-se na outra. Desta forma, julgava-se pronto para voltar a Nova Jerusalém e ajudar seu pai na missão de encher as burras da família com mais dinheiro.
Já devidamente instalado na cidade fundada pelo pai, Misael sentiu que seu casamento talvez tivesse sido um erro. A agora dona Eliane o tratava com certa frieza e distanciamento desde a lua de mel, que de fato não foi consumada. Ele chegou até mesmo a conversar com o pai sobre o assunto e o velho Orlando o aconselhou esperar, porque menina muito nova era assim mesmo, principalmente as carolas educadas em colégio de freiras.
- Mas ela nem dorme comigo! - confessou Misael a seu pai.
- Tenha paciência, meu filho. Seja gentil com ela e logo as coisas mudam.
Mas, na realidade, o que Misael ignorava era que Eliane havia se casado sem lhe ter amor algum. Apenas afeição e o desejo de sair das casas dos pais. Sua apatia para com a nova vida só foi aplacada quando ela conseguiu uma colocação como professora no colégio das freiras, como coordenadora do curso primário. Trabalhou apenas alguns dias como professora regente e a irmã diretora se dizia encantada com o preparo da jovem senhora - mais tarde, Eliane descobriria que esse encantamento da irmã diretora era apenas uma resposta a outro encantamento do prefeito e dono da cidade, o seu sogro Orlando, que doara mais um terreno às freiras para a ampliação do colégio.
Inconformado com o desprezo de sua mulher, Misael começou a beber e a frequentar uns bares suspeitos na saída da cidade. Deixava o trabalho no final da tarde e ia direto para os braços das mariposas. Chegava tarde da noite em casa e achava sua cama, sempre bem arrumada, no quarto de hóspedes. Antes de dormir, o bêbado Misael chegava-se à porta do quarto de sua mulher e berrava:
- Por que você faz isso comigo? Que mal lhe fiz?
Inútil, Misael nuca ouvia resposta alguma.


Capítulo IX - Os planos políticos do velho Orlando
Como um casamento infeliz torna-se muito conveniente para todos, ou para quase todos

Misael estava passando por uma depressão medonha. "Acabado", diziam os amigos mais próximo, que pelas costas já comentavam o infeliz casamento do rapaz. E justo no momento em que seu pai Orlando mais precisava dele. Os negócios prosperavam. A última aquisição do velho tinha sido quatro ônibus. a família que dominava o comércio da cidade, agora também tinha nas mãos o transporte rodoviário. A concessão foi quase que um presente de casamento do tio de Eliane, o deputado estadual Eduardo Godinho.
Em Curitiba, antes do casamento de Misael, o velho Orlando havia esboçado seus planos políticos para o deputado Godinho. Numa reunião partidária - do partido de situação, pois Godinho era situação sempre -, ficou acertado que na eleição seguinte, Orlando deixaria o cargo de prefeito de Nova Jerusalém, lançaria o nome de Misael para a prefeitura, sairia para deputado estadual e apoiaria a candidatura de Godinho para deputado federal ou até mesmo para o Senado. Godinho aceitou o acordo na hora, selado com apertos de mãos e tapinhas nas costas. Não havia erro possível neste projeto, seus munícipes votariam em quem ele mandasse votar. Afinal, ele era uma espécie de pai dos moradores de Nova Jerusalém que progredia junto com sua gente a olhos vistos.
Orlando só não contava com aquela situação constrangedora de seu filho e nora no casamento. A estratégia armada com boa antecedência não podia ter falhas. Por isso, num belo domingo de sol, Orlando convidou seu filho para pescar. havia anos que os dois não pescavam juntos. Orlando esperou o filho armar as traias na beira do rio e foi direto ao assunto:
- Você está lembrado do acordo que nós temos com o Godinho?...
- Sim meu pai, como eu iria esquecer desse assunto tão importante...
- Pois é, mas você precisa se aprumar. Voltar a ter juízo... Afinal, você vai ser prefeito da cidade.
- Sei disso pai, mas a Eliane está acabando comigo... Acho que vou pedir o desquite.
- Deixa de besteira rapaz. Daí é que nossos planos vão para o brejo. Imagina o escândalo! Você separado da sobrinha do Godinho.E depois, eleitor não gosta de político separado. O sujeito pode frequentar puteiro, ser ladrão, até mesmo tomar um gole, mas jamais ser separado. A família sempre em primeiro lugar. Ainda mais em nossa cidade. Já pensou como vai ser fazer campanha com aquele bando de carolas que não deixam as barras da batina do padre?
- Imagino, meu pai. mas é que eu já não aguento mais. A danada nem me olha na cara e pior, não sei por que ela me trata assim. Faço tudo por ela e nenhum carinho e nenhuma aprovação ou reprovação. Posso passar três noites na zona que ela nem dá bola.
- Sei que a situação não é boa. nem sei qual seria a minha reação caso sua mãe fizesse a mesma coisa. Mas aquela não tem cabeça para isso. É uma bugre sossegada e vive para me servir. A educação antiga era assim. Tudo isso começou com essa modernagem de mulher trabalhar fora. Ganhar o seu sustento. Sabia que lá na capital tem umas que até sustenta marmanjo?
- Sabia...
- Este mundo está perdido mesmo... Sei lá... Você não desconfia de sua mulher... Por acaso ela não teria um ex-namorado em Curitiba, ou algum gavião voando por perto aqui mesmo?...
- Não. Já verifiquei isso. Ela não manda carta e nem telefona para ninguém. Nem mesmo para a família. E aqui é de casa para o colégio ou igreja. Não olha para fulano algum. É uma santa a mulher. Eu só queria saber o que se passa na cabeça dela. Por que ela se casou comigo? Que defeito ela viu em mim na lua de mel?
- Bom, se é assim, renovo o meu conselho. Vá devagar, faça de conta que você a compreende.
- Está cada vez mais difícil seguir seu conselho. Já não tenho mais cabeça para viver com uma estranha dentro de casa...
- Calma filho, para tudo se dá um jeito. Sei que você é jovem, mas pense no futuro. Ainda vamos mandar nesse estado!
- Vou fazer um esforço, meu pai. Ou melhor, mais um esforço...
- Então vamos combinar umas coisas. Deixe de frequentar a zona daqui. Fale com o Edmundo, nosso contador, ele conhece um monte de puteiros nas cidades vizinhas. Quando der vontade procure outro lugar, não precisa ser aqui. Sabe como é a língua do povo... Beba menos ou em casa, não dê razão para conversas ou chances para as mexeriqueiras... Seja mais companheiro de sua mulher, comece a acompanhá-la nas missas de domingo e você vai ver que a falação do povo para...
- Falação? Que falação?
- Vai dizer que você não sabe?
- Não!
- A cidade inteira anda comentando que você não dorme com a Eliane. Deve ser aquela empregada...
- A Mariquinha?...
- Sim, ela mesma! A Mariquinha é quem deve estar falando pelos cotovelos o que se passa na sua casa. Quem mais seria?
- Velha estúpida! Vou, vou...
- Calma. Eu já falei com sua mãe que convenceu a Mariquinha a se demitir. Mandei dar uns trocados para ela ganhar mundo, sumir daqui. Amanhã deve aparecer lá na sua casa uma empregada nova, de fora, da roça e que nunca pisou por esses cantos....


Capítulo X - A aurora da demência
 Como a loucura se apresentou à Misael vestida de chita


A loucura é um outro grande mistério que nos fascina. Há os que nascem dementes. Mas há outros que ficam insanos aos poucos. Nascem e vivem por um tempo aparentemente com bom juízo, mas são apanhados por algum infortúnio, uma faísca a incendiar o inferno, que os empurram para o abismo espiralado da alienação. Caem, caem e caem nele continuamente, até desaparecerem como seres humanos.
Na segunda-feira depois da pescaria com o pai e uma bebedeira no bar do Joel, que ficava do lado de sua casa, Misael foi acordado por volta das 10 horas da manhã. Alguém chamava lá fora com palmas. Ainda vestido com o pijama, ele foi atender quem estava à porta. Afinal, a empregada havia se demitido e sua mulher devia estar no colégio:
- Sim - disse Misael à moça parada na escada de acesso a sua casa.
- Aqui é a casa da Dona Eliane? - perguntou a mocinha de cabelo preso e que carregava uma pequena mala.
- É, mas ela está no trabalho - respondeu o advogado, reparando na simplicidade do vestido da jovem feito chitado com flores azuis e vermelhas, desbotado pelo uso.
- A Dona Branca pediu para falar com ela... Vim para o trabalho...
- Ah, certo! Pode entrar. A Eliane deve chegar daqui a pouco. Ela sempre vem para o almoço.
A moça entrou e ficou parada próxima a porta.
- Pode sentar-se aí no sofá, enquanto você espera a Eliane - disse Misael indo para cozinha - vou apanhar um comprimido e água e já volto.
Realmente, a bebida começara a lhe fazer mal. As dores de cabeça tornaram-se constantes. O seu estômago já não aceitava alimentos tão facilmente como antes. Emagrecia:
- Como é seu nome? - perguntou o advogado à moça, ao voltar pra a sala com um grande copo d'água e gelo.
- É Aurora - disse a moça encabulada, desviando os olhos de Misael que a fitava fixamente.
- E de onde você vem, Aurora?
- De Santa Catarina, Jaraguá. Era para eu ter vindo mais cedo, mas demorei para achar a casa.
- O que você fazia lá? - tornou a perguntar Misael, observando melhor a moça: devia ter uns vinte cinco anos e, tímida, esfregava as mãos a cada resposta. Forte, bem feita de corpo, porém mal cuidada, sem pintura, apenas um brinco pequeno, barato, de enfeite e um furinho no queixo a lhe dar um toque de beleza na fisionomia triste.
- Eu trabalhava na roça e ajudava a madrinha nas coisas de casa...
- Madrinha? - disse Misael distraído na análise da nova empregada.
- Morava com ela, minha mãe era sozinha e morreu já faz tempo...
A conversa prometia se estender, Aurora explicava suas tarefas no sítio em Jaraguá do Sul. O cultivo de hortaliças, como cuidava dos patos e marrecos. Misael ria da simplicidade da moça e de seu sotaque catarina. Havia tempo que não ria assim, mas a chegada de Eliane o trouxe a seu mundo infeliz novamente e seu rosto tomou a sisudez de costume.
Como se criança fosse apanhado numa travessura, Misael apresentou Aurora para sua mulher e depois foi para o quarto trocar de roupa. Ficara o tempo todo de pijama e não notara. Sempre tivera um comportamento formal e jamais recebera alguém de pijama, nem mesmo empregados.
Já de camisa e gravata, antes de sair Misael passou pela sala e viu de relance Aurora lidando com as panelas na cozinha. precisava ir ao escritório da Companhia resolver pendências bancárias. Disse a Eliane que não podia ficar para o almoço e despediu-se dela com um lacônico tchau, ignorando que aquele dia iria marcar o início de sua ruína como gente.


Capítulo XI - O monopólio do comércio
Como as empresas de Orlando lucravam com o povo da cidade que ele fundou

No escritório da Companhia, Orlando notou a melhora repentina no ânimo de Misael:
- Estou vendo que nossa conversa na pescaria começou a fazer efeito! - comemorou o velho.
- Sim estou mais animado, afinal temos um projeto...
- O Edmundo deixou os livros da contabilidade para você verificar os balanços...
- Algum problema neles? - perguntou o advogado ao pai.
- Não, tudo na mais perfeita ordem. Edmundo é o melhor contador que existe! Vou para a algodoeira agora. Almoçarei com aquele gringo que acaba de chegar na cidade...
- Gringo?
- Sim, Mr. Robert - lembrou o velho - o norte-americano que me ajudou a trazer a indústria de algodão para nós. Parece que ele é portador de boas notícias. Estão querendo ampliar a unidade que beneficia o óleo do caroço de algodão. Vamos juntos?
- Não meu pai, acho que fico por aqui, tenho que ordenar os pagamentos bancários e dar uma olhada nos livros e depois não estou bem do estômago...
- Certo, fica para outra hora. O gringo deve ficar na cidade e teremos e você terá outras oportunidades para falar com ele. Sabe que o Mr. Robert já está arranhando bem o português. Espertos esses americanos, não confiam em tradutores. Lembra quando eu lhe apresentei no seu casamento em Curitiba?... O sujeito mal sabia dizer "bom-dia" e "obrigado". Ligou-me agora. Precisa ver a diferença!
Depois que Orlando saiu, Misael trancou a porta do escritório e tentou se concentrar nos livros contábeis. Um bom lucro no armazém de secos e molhados, um maior ainda na padaria, lojas de roupas, armarinhos e um extraordinário resultado na empresa de ônibus, na loja de materiais de construção, madeireira e outros pequenos comércios.
No livro da Companhia o velho mistério de sempre, aportes de capital sem a menção da fonte. - Isso vai dar problemas com o fisco, preciso falar com o velho! - pensou Misael em voz alta. - Vou agora assinar os cheques de pagamento; começarei pelos funcionários do escritório...
Enquanto assinava os cheques e conferia os valores na folha de pagamento, Misael ria-se sozinho. Recordava-se da caipirisse da empregada, seus modos envergonhados... Deu uma gargalhada ao lembrar da expressão do rosto de Eliane quando ela topou com a cena na sala: ele vestido de pijama e se divertindo com conversa daquela tosca figura com um furinho no queixo. Pela primeira vez jurava ter visto um quê de ciúme naquela mulher de pedra.
Às três horas da tarde terminou o serviço. Arrumou os livros e pediu que chamassem o contador:
- Olha, Edmundo, os cheques estão assinados e os livros estão vistados... Agora me explique essas entradas sem rubricas no livro da Companhia...
- Olha seu Misael, isso é coisa do Seo Orlando... Eu não sei explicar não... Ele recebe o dinheiro depositado no banco e pede que eu lance...
- Mas que droga de dinheiro é esse? Donde ele tira?
- Não faço a mínima ideia!
- Está bem... Converso com o velho mais tarde. Isso vai dar rolo...
- Eu já disse a ele. Mas o senhor conhece vosso pai. Teimoso...
- Sei. Bom, está tudo encaminhado... Estou indo para casa...
- Casa! A esta hora? Pensei que o senhor quisesse dar uma passadinha numas casas que seu pai pediu para que eu indicasse...
- Fica para outro dia, Seo Edmundo. Outro dia! Vou para a minha casa. Afinal, um candidato a prefeito tem que ter bom comportamento!


Capítulo XII - Um par de pernas abre os bolsos
Como Misael iniciou o perigoso processo de conquista da ingênua mulher vestida de chita 


A tarde estava terrivelmente quente. Misael fora ao escritório a pé, era pertinho e seus pés pareciam cozinhar dentro dos sapatos. O ar estava muito seco e um vento que nada refrescava arrastava a poeira vermelha para todo lado. O colarinho ficava uma imundice só.
- Isso não vai dar certo! - pensou Misael ao se aproximar de casa. Aurora lavava a calçada com a vassoura e baldes d'água. Com o calor e a poeira, lavar calçadas era um hábito em Nova Jerusalém. Mas o que despertou o vaticínio de Misael foi os trajes da empregada. Ela estava com o mesmo vestido de chita que se apresentara ao trabalho naquela manhã, porém com a barra juntada num nó lateral que o deixava acima dos joelhos, expondo parte das coxas brancas e bem feitas da moça. O espetáculo da lavagem da calçada já era acompanhado por meia dúzia de marmanjos, bêbados e desocupados, que tomavam cerveja àquela hora da tarde no bar do Joel. Todos estavam postados estrategicamente nas mesas que ficavam num puxado feito do lado de fora do bar. De longe, o jovem advogado escutava até mesmo os suspiros da homarada quando Aurora abaixava-se para apanhar os baldes.
Antes de abrir o portão, Misael ordenou:
- A senhorita poderia entrar. Preciso lhe falar!
- Sim - disse a empregada, enxugando o farto suor que escoria e lhe dava maior vivacidade no rubro do rosto.
- Não me leve a mal, mas a senhorita não tem outra roupa para fazer esse serviço, uma calça...
- O senhor me desculpe, mas só tenho essa peça para trabalhar, usava na roça, o outro é para ir à missa, no domingo...
- Está bem, junte os baldes e a vassoura e depois venha até aqui para a gente sair e ver se compra alguma coisa melhor...
- Mas, eu não tenho dinheiro!
- Não se preocupe. Depois, no pagamento, a gente vê o que faz! Vamos de carro, está muito quente...
- Preciso me arrumar um pouco...
- Não, vamos já! - disse Misael já abrindo a porta de passageiro do carro que estava encostado ao lado da casa, perto da garagem.
No carro, Misael esboçou vontade de rir, tal era a caipirisse daquela moça que se agarrava ao console com medo de cair nas curvas enquanto desfazia o nó na barra do vestido um pouco molhado. O advogado não pode deixar de ver em boa proximidade o que estava fazendo a alegria dos marmanjos do bar. Realmente, Aurora tinha um par de pernas maravilhosos.
Ao chegar na loja, Aurora mostrava-se acanhada. Misael mandou chamar a gerente:
- Dona Ana, essa é a Aurora que trabalha com a gente lá em casa. Quero que a senhora veja umas roupas e calçados para ela... O melhor que a senhora arranjar e uma calça comprida para o trabalho!
- Sim, senhor! - disse a gerente da loja que pertencia à família de Misael.
Aurora levou uma hora e meia para se decidir no que levaria e por mais de uma vez mostrou-se preocupada com o preço dos artigos apresentados pela gerente. Misael simplesmente dizia que era para que ela comprasse:
- Gostou leva - avisava - depois a gente faz umas parcelinhas de desconto no seu salário. Vamos fazer preço de custo. Metade do que está na etiqueta!
A princípio tímida, Aurora se empolgou com as mercadorias e acabou levando dois bons vestidos, uma saia, duas blusas, um par de sandálias e um sapato.
Ao final das compras, Misael demonstrava-se satisfeito em ter que colocar todos aqueles pacotes no carro. Esse tipo de programa ele nunca fizera com sua mulher Eliane, que sempre gostou de fazer compras sozinha. Na volta para casa, Aurora estava alegre como uma criança e não se cansava de agradecer a generosidade do patrão.

Capítulo XIII - Provocações
Como Misael pretendia a atenção da esposa pelo pior método possível



A mais das vezes, o coração transtornado é um acelerador da sucessão dos eventos que determinam grandes tragédias. Junte-se a isso desejos secretos, ciúmes, paixões irracionais, segredos nunca revelados e teremos aí o material que é feito o caldeirão do inferno.
Eliane saiu do colégio às seis horas da tarde em ponto e chegou em casa exatos 15 minutos depois e ficou preocupada com a ausência de Aurora. A princípio, Eliane julgou que a moça abandonara o emprego, mas depois verificou que as coisas dela estavam no quarto da empregada, que ficava fora da casa principal, numa edícula ao lado da churrasqueira. - Deve ter saído para comprar alguma coisa que estava faltando - pensou.
Algum tempo depois, Eliane surpreendeu-se ao ver Aurora e Misael entrando na sala com um monte de pacotes.
- Querida, levei a senhorita Aurora até a loja. Ela estava precisando comprar algumas roupas... - disse Misael, secretamente muito satisfeito com a reação de espanto da esposa.
- Aurora, você pode guardar essas coisas no seu quarto e depois volte aqui. Quero lhe dar algumas instruções para o jantar - ordenou Eliane.
Misael esperou a empregada sair da sala e tentou ver se conseguia provocar um pouco mais a sua mulher:
- A pobre estava lavando a calçada com a única roupa que tem e daí fui...
- Você não precisa me explicar nada - disse-lhe Eliane de forma seca, retirando-se para a cozinha.
Misael resolveu aguardar a hora da janta na biblioteca. Colocou um disco na vitrola e por lá ficou bebericando um uísque e fumando. Em vez em quando ria-se. Estava contente. Finalmente conseguira naquele dia mexer com a frieza de Eliane.
No jantar, Misael ficou atento aos gestos da esposa. Puxou conversa, falou do trabalho no escritório, do lucro nas lojas e Eliane apenas ouvia sem mostrar interesse na conversa do marido. Misael falava e a observava: comia pouco, esfregava nervosamente as mãos no canto da mesa, parecia nervosa. - Sim, Eliane estava nervosa! - comemorava Misael com seus botões. 
Antes de se recolher, Eliane deu mais algumas instruções para a empregada. Horário para levantar, como deveria ser preparado o café, as tarefas do dia seguinte:
- Agora, você pode ir. Para o banho, você deve usar o banheiro que fica perto do seu quarto. Por favor, não me vá perder a hora...